Tem um texto da Martha Medeiros, autora que marcou minha adolescência, que começa assim:
“Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia…”
Que alívio reencontrar essas palavras depois de quase dez anos, quando, um tanto quanto (mto) contra minha vontade comecei a contagem regressiva pra me despedir da Austrália e fui pega de surpresa por uma dor até então desconhecida.
Um aperto totalmente novo, uma saudade antecipada – que, sem aviso prévio, provocou pontadas no estômago e me fez chorar sorrindo. E chorar chorando, também. Mais vezes do que eu gostaria. Ao ponto de eu brincar que meus 30 últimos dias de visto pareciam um diagnóstico de 30 dias de vida.
“Para de drama, ninguém morreu”, pensei. Milhões de vezes.
Logo eu, que sempre me considerei desapegada e corajosa; que em menos de uma semana tomei a decisão de jogar minha OAB no lixo, indo de pizzaiola à bartender à fazendeira à corporate girl à instrutora de meditação à faxineira à locutora rs; do conforto ao desconforto, infinitas vezes, sem resquícios de saudades do que um dia fui.
Ou melhor, do que pensei ser. Esse apego com um lugar e tudo o que ele representa me pegou de surpresa pq até então, eu me considerava íntima de todos meus possíveis sofrimentos.
Dor de término, dor pós cirúrgica, dor nas costas de carregar meus trambolhos sozinha mudança após mudança, dor de ter me afastado de amigos de anos, de nunca ter conhecido seus filhos (!!! adulthood) ou ouvido suas histórias frente a frente, e não por WhatsApp.
A dor de perder meus avós estando longe, de protagonizar a transformação da menina que saiu do Brasil achando que ia passar 3 meses fora, e da morte da mulher conformada e previsível que eu nunca mais vou ser.
E como quem produz um filme e depois o assiste, vejo agora, de fora, que a proximidade desse fim despertou em mim algo mto além da dor. Me despedir do primeiro e até então único lugar no mundo onde me senti verdadeiramente em casa fez renascer em mim um senso de raridade.
Da duração eterna das convicções e descobertas, das amizades e amores, e de tudo o que é longo o suficiente pra permitir construção e morada. Quatro anos e meio de Austrália, a segunda – e talvez única – faculdade da minha vida.
Aos sábios professores disfarçados de amigos, às provas de recuperação escondidas atrás de chefes carrancudos e perrengues dignos de filme; à cada uma das matérias, das mais desafiadoras às mais deliciosas – resiliência, humildade, perdão amor, confiança, leveza… e a todos que ao meu lado foram alunos de uma ou todas essas disciplinas, durante anos ou por um diazinho… Obrigada.
E a essa terra, distante e mágica, dourada e azul turquesa, palco de cura e transformação de todos que aí chegam e a isso se dispõem… Thank you for having me.
E quando a saudade de casa ficar insuportável, I’ll find my way back. 🇦🇺
Australia, Jan de 2022.